Anastacio, o canalha

Posted on 15/05/2012

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Anastácio é um filho da mãe. Igual a todos nós. Mas, além disso, é um filho da puta e ai a sua semelhança não é tão unanime. Mas é numerosa, mais do que possa parecer. Não tanto pela progenitora que não tem culpa de sua circunstancia mas pelo seu caráter, este sim, altamente culposo. O Anastácio é um canalha e com todo orgulho. Não que ele tenha consciência de sua canalhice explicita, mesmo porque canalha não tem consciência. Digamos que o Anastácio tem orgulho de ser quem é, seja la o que isso significa porque nem ele sabe bem quem merda ele é.

 

Anastácio é capaz de comer a noiva antes da cerimônia do casamento e que seria a sua futura cunhada. E ela ainda é. Mas o Anastácio diz que não tem culpa mesmo porque ele nem sabe o que culpa significa. Ele conta que quem quis dar foi ela. Ele apenas a serviu. Foi sexo consentido e diante do protesto dos puritanos e do cunhado que às vezes frequentam os botecos onde Anastácio bebe e eventualmente come, alguém, ele diz que sempre foi adepto do sexo antes do casamento. E nesse caso específico da futura cunhada puta, nem atrasou a cerimônia, além do tolerável por etiqueta.

Um dia o Anastácio perambulava pela rua, sem rumo e sem prumo. Já tinha auxiliado uma velha a atravessar a rua, mesmo contra a sua vontade, mesmo porque a velha não tinha nenhum intenção de atravessar a rua e aproveitou e roubou a sua bolsa, sem ela notar. Um cachorro que veio latindo e abanando o rabo, feliz com o Anastacio, sabe-se la porque, levou um pontapé que o deixou manco e passou a mão na bunda de uma lourinha gostosa e botou a culpa em um padre que passava pelo pedaço. Até ajudou a linchar o filho da puta pedófilo. E estava ligeiramente bêbado o que era um assombro já que sua condição normal é totalmente bêbado. Mas sempre com enorme compostura. A cara de cínico é uma de suas mais valiosas características. Parece que as merdas que acontecem a sua volta não é com ele. O Anastácio é um canalha mas nunca um grosso ou um mal educado. É um cínico de classe. Um canalha de classe. Come a bunda do padre pedindo a benção antes. Solta peido em elevador fechado e lotado e assume a culpa com cara de sério. Esse tipo de coisa.

Mas nesse dia em particular, ele passou por uma criança sentada na calçada, calmamente chupando seu picolé. Anastácio deu um certeiro pontapé nas canelas do pirralho e roubou seu picolé. Diante do choro convulsivo do moleque, ele sentou ao seu lado e ofereceu, não o picolé que Anastácio já tinha devorado, mas um pouco de sua vã filosofia.

– Escuta aqui meu filho, não chora que a vida é assim.

– ….mas tio…..meu picolé……era meu….

– Nada é teu na vida. É teu desde que não venha alguém mais forte e pegue. É assim.

– Meu pai não é assim…..

– Teu pai é corno e um idealista, uma raça em extinção.

– É nada, em casa a minha mãe também é assim. E meus tios também são. Menos o Sucupira, um filho da puta.

– Esse é dos meus. Pelo menos não é cínico como o resto da cambada da tua família. Tua mãe é gostosa?

– Eu quero ser igual ao meu pai.

– Bem vindo à avenida da desilusão. Tua vida vai ser uma merda, se já não é.

– Minha vida ta ótima. Eu vou ser alguém e vou ser alguém bom.

– Isso não existe, meu chapa. O ser humano tem mania de idealizar as suas circunstancias. Acha que pode tudo e acha que é bom mas se chega de mau humor em casa, da um pontapé no cachorro, um esporro na mulher e uma chinelada no filho e vai tomar umas canas na esquina que la pelo menos ninguém enche seu saco, menos o portuga filho da puta que cobra os atrasados. Esse tem que se fuder mesmo.

– Em casa não tem cachorro…

– O sistema é uma merda. Porque além de idealizar a sua condição, ele idealiza os outros. Deita cátedra em cima de todos e de tudo, acha que ta tudo errado e que todos são uma merda e não se da conta do que esta embaixo de seu nariz. Me conta uma coisa: porque merda o banqueiro é rico? E porque merda o dono do plano de saúde tem avião e o escambau a quatro e paga uma merreca pros médicos que atendem a merda do seu plano? Sim, porque até aonde eu sei, banco não tem dinheiro. Quem tem são os clientes. Banco administra a grana que os otários depositam la. E devia distribuir o lucro que produz com aquela grana toda, entre os clientes. Ou não? E o mané dono do plano de saúde? Montou uma cooperativa e oferece serviços que ele mesmo não presta. Quem presta são os médicos credenciados. Ou seja, quem devia ganhar a grana que ele cobra dos associados deviam ser os médicos. Não ele. Mas não é assim, certo?

– Acho que não…

– Tem mané que defende a porra do Tibete, e exige liberdade e respeito aos direitos humanos mas da um pontapé no mendigo de merda que enche seu saco todos os dias na porta do boteco. Ou seja, defende algo que ele não tem a menor ideia do que seja. Nem sabe onde porra fica o Tibete. Sabe que é mais longe que a praça da bandeira. Exigem liberdade mas não tem liberdade aqui. Ou tu acha que tem? Liberdade meu filho é viver mané e isso tu não tem. Ou acha que tem? Vai pra praia hoje e ao cinema amanhã e come em um puta restaurante no fim de semana. No final do mês vem a conta e tu não tem pra pagar. E nem tem pra pagar a escola do teu filho, a conta da luz, a conta do gás e a conta do aluguel. E essas são só as básicas. E porque não tem? Porque o patrão te paga uma merreca e ele ganha a melhor fatia. Mas ele se arrisca, dizem e tem direito a ganhar mais. Mas se arrisca com que? Pegou uma grana emprestada e vai pagar com o lucro do seu trabalho. Mas quem trabalha? Ele e vc. Certo? E porque tu não ganha igual? Não trabalha também? Mas ele é mais esperto, mais inteligente, tem formação. Ora porra, o negócio é por casta? Quem é melhor, ganha mais? E quem diz quem é melhor? O mercado. E quem manda no mercado? Ora, o que ganha mais. No cu pardal. Isso é um circulo vicioso. E quem defende esse sistema de casta são os ricos, uma espécie de Drácula moderno e evoluído. Antigamente só sugavam sangue. Hoje aprenderam a sugar tudo. Sangue, suor, lagrimas, o caralho a quatro. Só não sugam merda que eles deixam pra gente comer. E quando vem alguém defender os que nada tem, esses nosferatus pegam em armas e defendem seus ricos privilégios com o nosso sangue.

– Eu ganho mesada…

– Uma outra injustiça. Pensa bem, se vc consegue fazer isso. Tu não faz merda nenhuma em casa. Teu quarto é uma bagunça, no banheiro tem cueca suja e meias imundas espalhadas por ai, tu nem sabe o que é cabide e nunca da descarga no vaso depois de uma boa cagada. Pensa que teu cocô é uma obra de arte pra ser admirada? E ainda por cima o teu dever volta do colégio com um dez. Só que eles sempre esquecem de colocar o um. É zero mesmo. Uma merda. Só da trabalho e despesa e ainda por cima te pagam? Deviam te cobrar, babaca.

– Tio, vou comprar um outro picolé. Quer um?

–  Tu não aprende mesmo. Mas olha, eu não sou maluco. Sei que isso não existe que nunca o ser humano vai ser assim. Ser humano é tudo cínico. Passa de bonzinho mas no fundo é um canalha. Louco pra comer a cunhada gostosa. Eu como mesmo. Nunca vai reconhecer a sua mediocridade e entender que ele é apenas um merda nesse enorme caldo que nos cerca. Tem que entender que mais vale a pena viver do que fuder o próximo e que ele só é dono de sua alma. E a sua alma ele não precisa vender ao diabo como os anúncios, a escola e seus pais ensinam. Sei que nunca o homem vai pensar assim. O sistema é foda, te engole, mastiga, te come e cospe fora porque afinal teu gosto é uma merda. Mas não custa pensar que poderia ser diferente. Acho que chamam a isso de utopia, o pensamento de um mundo melhor escrito por um santo, um tal de Thomas, um babaca.

Nota do autor: Utopia, livro do Thomas More, um santo da Igreja católica e que foi decapitado pelo priapico Henrique VIII. Não por defender um mundo ideal mas por não ter se sujeitado ao mundo pragmático, moralista e devasso do seu rei, o Deus da época.

– É, seria legal mesmo, tio.

– É nisso que da pensar.

Anastácio deu um cascudo no moleque e roubou seus trocados que tinha pra comprar mais sorvete.

– Sorvete é o caralho, pensou Anastácio. O negócio é beber.

O moleque ficou chorando baixinho sentado na calçada.

Seu pai ainda era seu ídolo.

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